segunda-feira, 24 de outubro de 2016

SAGRADO E PROFANO – A HISTÓRIA DA COCA


Planta de Coca


   A folha de coca é utilizada há centenas de anos pelos povos indígenas das florestas tropicais. Os incas atribuíam propriedades mágicas a planta que consideravam sagrada, um presente dos deuses para os homens, já que ao mascar suas folhas eles  conseguiam suportar a fome e a fadiga.  Os índios acreditavam que mascando a folha de coca entravam em contacto com deuses e espíritos que os protegeriam. Embora ainda não soubessem extrair a cocaína das folhas de coca, sabiam conservá-la misturando substâncias alcalinas à planta.
   Nos primeiros anos da colonização espanhola, a Igreja Católica condenou a coca alegando que o ritual de seu uso era bruxaria e corrompiam as populações nativas. Mas como a folha de coca se mostrou um excelente estimulante que permitia aos índios executar trabalhos pesados sem sentir cansaço, fome e sede, os espanhóis toleravam seu uso. A primeira citação científica da planta só foi escrita em 1708 pelo médico, químico e professor holandês Herman Boerhaave, na revista Institutiones Medicae. No começo do século XIX a coca caía nas graças de destacados botânicos, farmacologistas e médicos que a descreviam como “saudável e condutora da longevidade“, “evocadora da potência do organismo, sem deixar sinal algum de debilidade conseqüente“, entre outros comentários efusivos.
   Mas foi só quando o químico alemão Albert Niemann (1834–1861), recebeu do naturalista austríaco Carl Von Scherzer uma amostra de folhas de coca que trouxe de uma viagem ao Peru, que o princípio ativo da folha de coca foi isolado. Foi Niemann que batizou a substância de ‘cocaína’  em 1860. Como se mostrou um poderoso anestésico local, chegou a ser utilizado como medicamento para diversos fins até o início do século XX.
   Vários produtos comerciais utilizaram folhas de coca. Em 1863 o empresário italiano Angelo Mariani desenvolveu o vinho de coca onde seu anúncio dizia que “nutria, fortificava e refrescava a mente e o corpo”. O Vinho Mariani logo foi um sucesso. Era consumido principalmente por artistas e escritores, mas também pela Rainha Victoria, por William McKinley (25º presidente dos Estados Unidos), por Thomas Edison e até pelo Papa Leão XIII que chegou a conceder ao Vinho Mariani um selo oficial de aprovação e uma medalha de ouro ao seu criador.
   Em 1885, o farmacêutico John Pemberton veterano da Guerra Civil Americana, procurava algum remédio que o livrasse do seu vício de morfina contraído em batalha. Criou um tônico à base de folha de coca e noz-de-cola. Quando provou o xarope, sentiu imediatamente alivio às suas dores de cabeça, um dos sintomas de abstinência de morfina.  Resolveu colocar seu tônico para vender em uma farmácia. Ao perceber que as pessoas passaram a consumir seu produto indiscriminadamente, Pamberton fez leves alterações na receita e fez de sua bebida um ‘Vinho de Coca’ como o Mariani, para ser apreciado nas lanchonetes. O nome original era Pemberton’s French Wine Coca. Pouco depois o produto ganhou o nome que tem até hoje: Coca-Cola.
Vinho Mariani em anúncio do final do século XIX
   A título de estudar os efeitos sobre a cocaína, dois laboratórios, Merck (a partir de 1862) e Parke Davis (a partir de 1870), passaram a comercializar a cocaína em forma de óleos, inaladores, sprays nasais, vinhos e cigarros, e distribuíam a substância para alguns especialistas realizarem pesquisas.
   Um deles era nada menos que o pai da psicanálise, Sigmund Freud.
   Em 1884 Freud publicou o artigo “Über Coca”, onde relatava a história de sua utilização na América do Sul, seus efeitos e suas diversas utilizações terapêuticas. Freud relatava a capacidade da substância de exaltar o humor, aliviar transtornos gástricos, caquexia e a asma, além de suas propriedades afrodisíacas e seu possível uso como anestésico local. Ele mesmo fazia uso de cocaína constantemente e considerava improvável a existência de uma dose letal para essa droga.
   Mas o que os laboratórios queriam era encontrar uma nova droga que livrasse as pessoas do vício de morfina, e Freud acreditou que essa droga poderia ser a cocaína.  Por isso estimulou diversos colegas a utilizarem cocaína, como o oftalmologista vienense Carl Koller, que injetou como anestésico local em uma cirurgia em um paciente com glaucoma. A cocaína foi o primeiro anestésico local a ser utilizado em cirurgias.
   Após essa descoberta, a cocaína foi utilizada em cirurgias oculares, dentárias e auditivas.
   As principais revistas médicas da Europa e dos Estados Unidos da época, incentivavam seu uso como estimulante e para “deixar as damas plenas de vivacidade e charme“.
   Um dos primeiros dissabores de Freud com a cocaína veio de seu amigo Dr. Ernst von Fleischl Marxow que utilizava a droga como alternativa à sua dependência de morfina (adquirida após ele ter amputado uma perna), por sugestão do próprio Freud. Com a grande quantidade que Fleischl passou a ingerir, ele desenvolveu um quadro de psicose paranóide intratável.
   Por volta de 1890 já havia cerca de 400 casos de danos físicos e psíquicos relacionados à cocaína publicados na literatura médica. A comunidade científica acusou Freud de dar vazão a terceira praga da humanidade – depois do álcool e da morfina – chamando-o de irresponsável, o que o obrigou posteriormente, a revisar seu estudo sobre a substância.
   Em 1901 a Coca-Cola retirou a cocaína de sua fórmula, passando a utilizar extrato de folha descocainizada de coca, o que fazem até hoje.  Mesmo assim, em 1909 ainda haviam nos Estados Unidos mais de 60 tipos de bebidas que continham cocaína em sua fórmula.
   Com a entrada em vigor da Lei Seca, John Pemberton substituiu o álcool da fórmula da Coca Cola por noz de cola e gaseificou a água, fazendo um produto semelhante ao que é consumido hoje.
   Com o aumento dos casos de pessoas apresentando quadros psicóticos e depressivos, além de insônia e vício em cocaína, as comunidades científicas passaram a criticar a venda da cocaína pela indústria farmacêutica, afirmando que esses haviam promovido a substância de uma maneira irresponsável e não-científica. As mesmas comunidades aliás, que no início só ressaltavam as qualidades da nova droga.
   A partir daí a cocaína caiu em desuso pela classe médica até ser definitivamente proibida por leis norte-americanas, seguida pelos demais países.

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